domingo, 29 de março de 2015

Encantos e desencantos



Dentro de casa, Ana escutou Juca chamá-la : “mamãe, corre, vem ver um tucano.” A mãe saiu apressada e logo chegou ao quintal. Disse a Juca: “onde, filho?”. Ele apontava pra cima, mas Ana tinha dificuldades para encontrar o pássaro. Juca saltava e com os dedos apontados para o alto, falava: “há muitos”. Notando as inúmeras rotações desencontradas da mãe, Juca pegou-a pelas mãos e a conduziu para um local onde ela pôde avistar um só tucano. O “um” que lhe rendeu o infinito porque o que Ana viu há tempos seus olhos não enxergavam. Naquela cena havia um mundo decantado do peso do olhar treinado para obviedades. Ali quem ditava a regra era o detalhe, que só a lentidão era capaz de trazer. O que reinava era o melódico ruído de folhas de mangueiras e um tucano sobre galhos retorcidos. Coisas desimportantes podiam ser mesmo encantadas, como falou o poeta Manoel de Barros.
Noutro canto de mundo, Bruno se cansara de procurar os pardais que costumavam pousar nos fios de eletricidade da estreita rua onde morava. Seu olhar acostumara-se com a tela de televisão, que lhe rendia risos mecânicos diante das travessuras de seu herói pica-pau. Absorto na sua lassidão, era a mãe quem tinha o hábito de chamá-lo. E como de costume, numa noite recém anunciada, a mãe disse: “vem dormir, menino.” Num pulo, Bruno chegou até a cama da mãe, que ficava no canto do apertado quartinho onde moravam. Aninhou-se ao corpo dela e antes do sono virar sonho, escutou a porta ranger. O pai veio cambaleando e arrancou a mãe com violência da cama. O menino pegou uma das mãos da mãe, mas não conseguiu conduzi-la até a rua onde imaginou pousar dezenas de pardais. Foi atingido por um tapa. E a mãe não pôde enxergar um só pardal que fosse. Coisas importantes podiam ser mesmo desencantadas, como se leu num processo criminal qualquer.

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