quarta-feira, 10 de julho de 2013

Mundo padrão Fifa - parte 1

(Esse texto vai pro tio Maurílio, pai da Mari, quem, além de grande torcedor do Galo, aos 70 anos completos, pegou outro dia um ônibus do Park Way a Santo Antônio do Descoberto "só pra ter a experiência...").


Não tenho conteúdo político/sociológico/filosófico suficiente para analisar devidamente o que andou rolando no país nos últimos tempos junto com a Copa das Confederações.
Mas tenho os meus pitacos.
E um deles é que o negócio começou por causa dos ônibus e tal, mas só virou o que virou por causa do futebol.
Tinha que ser ele, a vaca sagrada brasileira: o futebol.
Aproveitou-se, felizmente, pra se falar de tudo - escola, hospital, PEC 37, cura gay -, mas, pra mim, o que não desceu na goela do brasileiro mesmo, o que entalou, fez engasgar, e aí sim possibilitou vir pra fora um vômito completo, foi ele, o danado do futebol.
Curioso.
O brasileiro tinha, até então, se resignado, no bom e no mau sentido, em ficar de fora do básico da decência - comida, moradia, segurança, processos democráticos, governância honesta e tudo o mais. Até aí nenhuma novidade.
Mas do futebol, ah, do futebol foi desaforo demais. A gota d'água. O triz que faltava.
Porque em relação ao futebol todo mundo sempre se sentiu protagonista.
Inclusive, e especialmente, o que a gente chama de povão; quantitativamente falando, os mais brasileiros dos brasileiros. A maior parte dos jogadores é de origem humilde; em qualquer canto deste país, por mais miserável que seja, tem nesse momento uma dúzia de moleques roçando canela hipnotizados por suas bolas, ainda que por esse nome responda apenas um punhado de pano ou mato ou entulho enrolado.
Quem lota os estádios, nos dias de feijão com arroz (leia-se "de padrão Brasil"), é essa gente brava que deixou seu couro em algum lugar durante a semana inteira; ficou entalado no ônibus/trem/metrô umas três horas por dia para chegar no trabalho; foi pra fila do posto de saúde de madrugada mostrar pro doutor a tosse que não passa e não encontrou médico; mandou o filho pra escola mas ele voltou sem nada de novo pra contar.
Essa gente que quase por milagre sobrevive à semana, guarda um troquinho e, no domingo, vai pro estádio mandar tudo pro inferno, transferindo pro time um poder, um destaque, uma vitória que sabe que ele, por si próprio, nunca terá. Vai lá soltar os bichos, torcer, vibrar, se divertir, em possivelmente um dos únicos contextos que tem para isso. O circo que tem o poder de anestesiar, ainda que só por uns momentos, a injusta falta do pão.
Pois deixar esse pessoal de fora da prévia do maior espetáculo do futebol foi o fim (ou começo?).
No país do futebol, receber a Copa das Confederações aqui e os jogos continuarem tão inacessíveis a 90% da população como se estivessem acontecendo na Estônia tirou alguma coisa séria do lugar. Os estádios pareceram aguentar o tranco, mas o país pelo jeito não. Desabamos em manifestações.
E não foi só o cara que não conseguiu comprar o ingresso. O que comprou também se sentiu incomodado. Pra mim, a vaia na Dilma não foi outra coisa. Entrar no Mané Garrincha e ver que o jogo de futebol estava mais pra Rolland Garros do que pra futebol mexeu com todo mundo. Padrão Fifa, meu amor. É limpo, é seguro, é bonito, mas é de isopor, falta carne. Com o Brasil no cabresto da Fifa, faltou o nosso jeito de fazer festa (que também pode ser limpa, segura e bonita, além de tudo), o qual, com certeza, começaria por abrir os portões pra quem quisesse ir.
A verdade é que futebol sem massa nos pareceu muito mais ou menos. Até quem não é massa sentiu.
Imaginava-se tudo "na Copa", menos que ela poderia não ter essa graça toda. E tá aí uma coisa que com a falta o brasileiro não estava acostumado: graça.
Tamanha foi a estranheza que ele teve que ir pras ruas, teve que fazer a "festa" de qualquer jeito. Repare se essas manifestações, em alguma medida, não se pareceram com o que se vê em campo e nas torcidas. Uma sinergia, uma expansão, uma excitação. Impedido de gozar no estádio, deu-se um jeito de fazer o espetáculo; invadiu-se às ruas - e bandeiras não faltavam pra hastear.
Em um dos últimos rincões no Brasil onde não havia (ou não havia tanta) segregação e que por noventa minutos driblava-se a insuportável desigualdade, o brasileiro se horrorizou ao se perceber barrado no baile - baile que rolou em sua própria casa. E isso, me parece, fez pipocar o início do fim da tolerância em relação a tudo o mais que não se devia estar tolerando mesmo.
Ruim pro futebol, ótimo pro Brasil.
Vendo por esse ângulo, acho que nunca um torneio de futebol fez tão bem a um país sede. Paradoxalmente, talvez o dinheirão público empregado nessa perfumaria toda nunca tenha propiciado algo tão essencial a um povo: indignação e voz. Foi por acidente, foi a maior zebra, mas não deixou de ser uma goleada incrível.
Assim até eu, que confesso ter que fazer um certo esforço pra vibrar com "a pátria de chuteiras",  quando vejo já estou "imaginando na Copa", mal podendo esperar pelos próximos capítulos dessa história.

Um comentário:

  1. UAU!!!!
    Adorei essa teoria de que foi o futebol, ou melhor, a falta dele que desencadeaou as manifestações.
    Que venha a Copa mesmo e que Deus abençoe nosso país!
    Bjs,
    Cata.

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