sexta-feira, 15 de março de 2013

O menino que sabia de medos


 

Pilar estava entre mulheres.  Uma delas disse algo que a aturdiu. Foi assim fácil aceitar o convite de um menino lépido que por ali apareceu.  Ele entrelaçou suas pequenas mãos nas dela e juntos foram até um quarto só com colchões, onde num canto dormia uma menina, cujos cabelos de mechas douradas pareciam desenhar o travesseiro. Noutro canto, sobre uma pequena mesa havia um aquário com um único peixe.

O menininho perguntou a Pilar: você quer pegar meu peixe? Sem pestanejar, ela disse que não. Ele virou-se de soslaio, transparecendo estar frustrado. Pilar resolveu, então, narrar suas dificuldades em acarinhar o tal peixinho. E ao notar que os olhos dele estavam ávidos por detalhes enveredou-se pelos caminhos por quais andavam os peixes de sua vida. E ali falou que sua história com peixes começara quando ainda era criança como ele.

 Na memória de Pilar redesenharam-se cenas antigas: um aquário modesto, num banheiro onde raios de sol faziam-no parecer maior do que era; peixes de cores gastas que costumavam pular do aquário e eram encontrados no chão ainda sacudindo; operações de salvamento dos peixes suicidas, sempre feitas, curiosamente, por irmãos mais novos de Pilar, que quase sempre acabavam em  sepultamento.

Pilar sentiu-se à vontade para contar ao menino aqueles minutos vivos de sua infância que a memória conseguira recolher tão bem. Espreguiçou e já sonolenta acudiu-lhe que não convinha esconder do menino que os peixes desde então lhe renderam medo. E dividiu com o garoto um passeio fracassado, que a deixou sozinha no barco, enquanto todos se divertiam mergulhando, por puro pânico dos peixes a tocarem.  Pilar, não tão forte quanto seu nome, não pôde deixar de confessar ao menino que depois de um curso de mergulho, que só chegou à metade, parou de duelar com bichos inofensivos. E tagarelando sobre o assunto, num jeito mais assertivo que o de costume, orgulhou-se de já ter mergulhado em águas transparentes com peixes coloridos, golfinhos e arraias. Sem a honestidade que pedia o arquear profundo do olhar do menino, omitiu que o mergulho acontecera porque seu bondoso namorado a acompanhara.  Aliviada por terminar sua narrativa cortada por meias verdades, Pilar espremeu com força seus pés no chão claro, como se aquele gesto pudesse esconder a angústia que a invadira. O menino fitou profundamente os olhos de Pilar e disparou: você ainda tem muito medo pois não beijou meu peixe. Pilar engoliu seco. O menino percebeu e com enorme doçura ponderou: você pode fazer carinho no meu peixe pelo vidro do aquário.

Pilar, dias antes de encontrar o menino, havia lido que “a angústia é a vertigem da liberdade” (Kierkegaard). O menino a ensinara que os peixes mortos de seus medos vivos podiam se transformar em medos mortos de peixes vivos. Bastava olhar a cena pelo vidro.

2 comentários:

  1. Bravo, Mariana!
    Adorei o desfecho "peixes mortos de seus medos vivos podiam se transformar em medos mortos de peixes vivos"
    Eis aqui uma leitora que padece de alguns medos, ora infantis, ora maduros. Estariam as asas do meu medo em queda livre ou em pleno voo? Vivas ou mortas?

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  2. Mari, eu tb tinha me esquecido de dizer o qto achei genial essa frase assinalada pela Caroline. Muito muito boa.

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