quinta-feira, 21 de março de 2013

Foi bom

É natural todo fim nos levar a uma pergunta, uma reflexão, uma investigação, um julgamento, para nós mesmos. Qual a nossa conclusão em relação ao que acabou? Foi bom o fim de filme, o fim de peça, o fim de show. Foi bom o fim de viagem, o fim de férias, o fim de semana. Foi bom o fim de um de amor, de uma amizade, de um caso. Foi bom?
Olhando para meu velho, alquebrado, deitado em uma cama de hospital e com olhos fechados, corroído pela doença, quase no fim, me pergunto, olhando para ele, e pensando por mim: “Foi bom?”. Foi é a resposta natural. Foi bom pai. A maior parte do tempo. Foi o meu herói quando se jogou de terno e gravata para salvar meu irmão que tinha caído por acidente na piscina funda do clube, numa dessas bobagens que meninos de cinco anos costumam fazer. Se jogou sem pensar, sem refletir. Logo ele que nem sabia nadar direito. Disso só soube anos mais tarde. E saiu ensopado, sob os olhares atônitos e curiosos dos presentes, esbravejando por não ter um salva-vidas por ali. Mas eu e meu irmão não precisávamos de salva-vidas, pois tínhamos o nosso, particular, sempre a postos. Foi sim bom pai. E pouco importa que a maior parte do tempo estivesse preocupado demais com coisas de gente grande. Pouco importa que não fizesse os deveres conosco, que não olhasse o boletim que insistíamos em mostrar orgulhosos, que ralhasse conosco por motivos de pouca importância e que de quando em vez nos desse chineladas merecidas e imerecidas. Pouco importa que não sentasse para brincar conosco e se mantivesse, quase sempre, olhando por entre nós e pensando em algo. Provavelmente problemas de adulto e que naquelas horas eram mais importantes do que estar conosco. Insistia em dizer “A vida é um mar de sangue, suor e lágrimas, filho”; “ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Venceu algumas batalhas, perdeu outras tantas, atrapalhou-se pelo caminho. Como os atletas, como os bichos, perto do fim, perdeu mais do que ganhou. Mas não se acostumou com isso: sofria. Foi bom pai. Poderia ter sido melhor pai, como também eu poderia ter sido melhor filho. Como todos nós poderíamos ter sido melhores em tudo e em qualquer coisa. E talvez ainda possamos em algumas delas...
E mantendo a pergunta, olhando para ele, mas mudando o foco, e perguntando por ele: “Foi bom?”. Foi boa a vida que chega quase ao fim? Sei não e arrisco dizer que não. Difícil tentar entender o que se passa no íntimo de outro ser. Eu o enxergava sempre ocupado, olhando para fora de si, mas para dentro de ninguém, trabalhando, trabalhando, trabalhando, descuidando do corpo, da alma e do coração, esperando dias melhores que chegariam, para que, então, começasse a viver. E tantas vezes repetiu: “Em breve, filho, assim que as coisas melhorarem”. E os dias viraram semanas, as semanas viraram meses, os meses viraram anos, e os anos - quem diria - viraram algumas poucas décadas. Suficientes para não fazermos aquela viagem, para não irmos ao estádio ver aquele jogo, para não assistirmos aquele filme, para não ouvirmos aquela música, para não termos aquela conversa. Só há pouco tempo mesmo, com meu pai já bastante combalido, mas ainda sentando, descobri o gosto dele por jogar dominó. Ele ria! Por que não antes, meu Deus? Eu estive ali, eu estava ali, o tempo quase todo! E mesmo depois que parei de perguntar, porque a resposta era sempre a mesma “Em breve...”, eu teria voltado. Teria. Quero acreditar que teria. E também se eu não tivesse voltado, pouco importa, porque você teria sido feliz de qualquer maneira. Me corrijo e digo então que pode ter sido boa a vida pra ele. E me resta, agora, chorar por você e por mim, e amar meus filhos, com quem você nem conviveu, porque moramos em cidades diferentes. E me resta tentar ser um pai melhor do que tenho sido e melhor do que você foi. E me resta te amar para sempre, como um bom pai. Pra mim eu tenho a certeza que foi bom!
(anônimo)

2 comentários:

  1. gosto de ler esse texto como gostei da primeira vez que chegou até minhas mãos.

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  2. Lindo! Profundo! Identificação total.

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