domingo, 3 de março de 2013

vida eterna

Eu só a vi umas duas ou três vezes, mas já foi o suficiente para entender porque os olhos do meu marido quase quarentão sempre se acendem, e às vezes aguam, quando fala dela. Tia Nádia, mãe do Fonte, um dos maiores amigos do Patrick desde criança, tinha tudo pra ter desempenhado na infância/adolescência dele uma pontinha bem coadjuvante: a mãe do amigo. Mas o seu coração desmedido acabou por fazer dela uma das maiores referências de amor e generosidade do Patrick (e, de quebra, minha também - recebo, feliz, esse dote de casamento).
Tanto que outro dia peguei na jugular dele. Ao ouvir um estranha resposta sobre ele não poder ir buscar uma das amigas que Manú mais adora na casa dela em Sobradinho ("hoje eu não quero sair do lago norte"), repliquei na hora: "é... imagina se tia Nádia pensasse igual..." O efeito foi pronto: acho que não foram nem cinco minutos até eu ouvir o ronco do motor do carro saindo da garagem, com a Manú quicando de alegria atrás.
Ele conta que era invariavelmente assim. Que tia Nádia era uma dessas pessoas que não fazia contas quando se tratava de acolher alguém, incluir, ajudar. Literalmente, andava o quilômetro extra pelo outro sempre que fosse preciso. Que ela o levava e buscava quantas vezes fossem as combinadas lá no final do lago sul (sem ponte nova) e que, não importava a hora em que a festinha terminasse, era a mãe do Fonte que os buscava na madrugada. No verão, a família tinha uma casa no Rio e lá ia o Patrick passar as férias inteiras debaixo da asa dela. Posso garantir pra tia Nádia que, no arquivo pessoal dele, esses verões pertencem às lembranças mais empolgantes.
Há uns dois anos, o telefone tocou e do outro lado era a notícia da morte dela. A gente já estava esperando, mas deu pra ouvir o peito do Patrick trincando por dentro. Nem pestanejou, tocou imediatamente pro aeroporto: dessa vez o caminho era por conta dele.
Mas quem disse que tia Nádia não continua aqui? Claro que continua. Tanto que outro dia foi buscar a pequena Ana Clara em Sobradinho. Tá aí uma forma de eternidade em que acredito: o amor, a atenção, o carinho que a gente dá pra alguém e que esse alguém vai dar igualzinho pra outro alguém mais adiante e sucessivamente; os exemplos e lembranças nossas que pesarão na hora de alguém decidir, dentre outras coisas, se tira a bunda do sofá ou não.
Escrevo isso e vejo que o post mudou de assunto. Eu queria mesmo era falar dessas mães e pais dos amigos que marcam absurdamente a vida da gente. Adultos fenomenais que, no lugar daquela usual troca de monossílabos mal humorados com os amigos dos filhos, acham disposição pra se relacionar de verdade com eles (crianças embirradas e adolescentes intragáveis, comumente).
Como o sem igual tio Juca, que dentre outros crimes açucarados (todos prescritos, viu, tio?), me apresentou ao whisky às quatro da tarde de uma prosaica terça-feira de dever de casa. E tia Eliane, que também se foi muito cedo, pra quem não bastavam os três filhos, passava a mão em mais um penca de adolescentes e nos levava pras melhores férias do mundo em Rio das Ostras. Ou tia Deusa, com seus imensos olhos de céu, que de vez em quando mandava lanche pra mim na lancheira da Raquel (e que lanche!), só assim, porque tinha se lembrado de mim.
Eles bem que mereciam eu falar devagar de cada um, mas não vai dar tempo. O exemplo de minha mãe, que sempre largou tudo pra me acudir, me atropela: alguém chora.

12 comentários:

  1. Como foi bom ler isso, um tanto sofrido para mim, mas muito bom. Texto lindo, me fez sorrir , me fez chorar, mas, sobretudo, me fez viver um tempo que não volta mais. Obrigado, Gabriela.

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  2. AMORE! EU ATÉ BOTEI OS ÓCULOS DE VISTA CANSADA PRA LER ESSE! EU GOSTO QDO A COISA VEM PRO LADO HUMANO. GOSTO DO MUNDANO. E PREFIRO O HUMANO!

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  3. Querida Gabriela! Obrigado por descrever com tanto carinho, doçura e delicadeza um pedacinho do que foi a minha querida mãe. Pedacinho este que, como pude perceber, reserva um lugarzinho especial no coração de vocês e que acaba por se tornar uma boa referência em algumas ocasiões. Incrível imaginar e perceber como a minha mãe pode ao mesmo tempo estar aqui e aí, e em tantos outros lugares por onde andou ao longo de sua vida! Definitivamente esta é uma forma de eternidade. Obrigado por ter dedicado um espaço em seu blog e em seu tempo para, de certa forma, homenagear a minha mãe. Saiba que me senti muito honrado.
    Do seu querido amigo, Fonte.

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    1. Que legal que o texto chegou até você, Fonte. Não só tia Nádia, mas você e sua família toda são muito queridos pra gente. Tenho muito orgulho, aliás, de você ser o padrinho da nossa Clarice. Mesmo que vocês nunca venham a conviver muito, ela ter na vida dela como referência uma pessoa como você, com o seu "berço", me traz uma satisfação enorme.
      Beijos,
      Gabriela

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  4. Bom quando o texto encontra cantinho seguro no coração dos filhos que fazem viver quem já foi!

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  5. Fã de carteirinha! Pense numa criatura que sabe transformar em palavra aquilo que, antes, se afigurava inefável!
    Amor. Realmente a única coisa capaz de fazer cair por terra a implacável lei da transitoriedade, da finitude.

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    1. Ramon, eu tenho quase certeza que esse comentário aqui é seu. É?

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    2. Hehehehe! Onde nesse blog tem câmera apontada pra quem digita algum comentário?! ;)
      Digamos que em 2013 tive a grata surpresa de descobrir uma forma de matar saudade de pessoa querida e, de quebra, saborear conversa de qualidade no conforto do meu próprio quarto!
      Toda a minha gratidão e o meu aplauso caloroso pelo raciocínio compartilhado no post da UTI! Que me rotulem de místico ou whatever, mas garanto que essa vó sortuda serenou muita angústia conduzida por esse fio carinhoso de raciocínos tão saneadores!

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    3. A câmera do meu blog foi a palavra "criatura" que é muito sua e, sem exagero, a capacidade de entender exatamente o que eu tentei dizer. Isso também sempre é muito seu. Li e na hora vi que o comentário era seu... Se esse blog inteiro fosse só pra receber seus comentários já valeria muito a pena, reimons! Continue me dando a honra!

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  6. Que delicadeza a sua, Gabi! Lindas e marcantes suas palavras...adorei! Beijo, Mônica Müller

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    1. Obrigada, Mônica, eu presto uma atenção danada em tudo o que você fala... Adoroooo.

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    2. Minha querida quase nora, os meus olhos cansados de vestiram de lágrimas ao ler o que você escreveu sobre a minha Nádia. O meu coração é pequeno para comportar todo o amor que eu dedico a ela, mas não tão pequeno que não possa acolher aqueles que também a amaram e amam. Obrigado pelo afago no coração deste seu quase sogro.

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