quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Águas de dentro

 

Braços

em

deslizamento.

Quadril a balançar.

Deveria se aquietar.

Agita-se para acomodar

os remendos frágeis

de mergulhos

distantes.

Neles faltaram ar?

As mãos, acarinhadas por bolhinhas nascidas do balanço das ondas,

ao avançarem nado adiante sussuram:

Imersões tiram ar.

Quando é tempo de

submergir,

há na boca

qualquer gosto

de um voar.

Os braços seguem a nadar

num palmateio

que faz

a menina quase decolar,

levando

o respiro que

ela não sabia que

morava no

mar.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

feiras

Terça-feira. Recosto meus ombros nos braços magros dele. Na tela da TV à nossa frente mais um episódio de A usurpadora. O som das falas traduzidas dos personagens se mistura ao roçar das longas unhas dele nos meus cabelos. Pergunto por qual razão ele tem unhas tão compridas e ele responde que é porque as pinta nos finais de semana - no geral, de vermelho. Confiro tomando a mão direita dele, procurando pelos restos. Na próxima semana vai vir de unhas pintadas, fala. A novela segue. Choramos. Ele me conta do último namorado. Eu escuto. 

Sexta-feira. Amo estudar na sala de visita, espaço interditado às confusões familiares. Território onde brincam as frestas de luz, que têm ali passe garantido porque não deixam bagunça. Ele diz que já posso entrar, não vai contar pra minha mãe. Tem nas mãos uma enceradeira que deixa no canto para ir na direção de uma samambaia que pende do cachepô sobre o aparador. Ele ajeita a planta, balança os quadris com movimentos suaves e canta: “Eu não sei dizer, nada por dizer, então eu escuto. Se você disser tudo que quiser então eu escuto. Faaala. Lá, lá, lá, lá. Se eu não entender, não vou responder. Então, eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar. Então, eu escuto. Faaaaaaaaaaaala. Lá. Lá. Lá. Falaaaaa.” Eu pergunto de quem é a música. Ele diz: “só sei quem a canta. É o meu Ney”. 

Segunda-feira. Ele chega e as unhas estão mesmos cobertas de vermelho. No meio da tarde, entro na área de serviço. Dança pra mim. Coloca uma calça brilhante justa com uma camisa de seda aberta. Abre os braços e os meneia já em voo. É a primeira vez que o vejo cantar “Pavão Misterioso”. 

Outras-feiras. Rimos, tagarelando. Nos prantos, silêncios. Ele canta chorando. Eu escuto. Ele canta sorrindo. Eu falo para dentro. 

Acabaram-se as feiras, com ele, que se foi. Alguém me diz que “os meninos malvados, viados” se vão para sempre. 

Sem ele, vivi muitas feiras, trezentas, centenas, milhares. feiras sem calendário. Ainda o vejo cantar, no meio de uma tarde de alguma quinta. Canções cantadas em forma de escuta. Não é do Ney. Conta a história de uma menina de doze anos que ainda iria ultrapassar os horizontes do morro em que morava. Raramente pintou as unhas de vermelho, pois preferia azul do luar. Mas toda sexta escutou, como quem comunga religiosamente aos domingos, a canção “Fala”. Assim, encontravam-se, voando. No carnaval, junto com a filha, se fantasiou de pavão misterioso. Na derradeira terça-feira, soube que já não havia meninos a balançar os quadris e cantar sorrindo. Como a não suportar mais, fugiu no seu balão vermelho, horizonte além e morro acima, onde fazia pleno seu azul luar.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

engomadoria

 


Descaminhando te escuto chiar.

Procuro-te.

Na perdição

uma música.

Parece me levar.

Acho que te vejo.

Engomas meu desejo.

Enfeitas minha saudade

mas o teu vai e vem,

não dá conta do meu

desalinho,

que é tão

tão profundo,

que sequer o vapor

suaviza meu desvario.

Sigo então sem esmero,

um bocado amarrotada,

em companhia dos meus (des)fados

já há muito  

(des)encontrados.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Moldura

Recebo um presente enrolado numa folha de jornal.
O presente?
Um cartaz de um congresso esquecido.
Nele há letras brancas que emergem de um profundo desenho azul.
O mesmo azul do céu que ora me acolhe, ora me desmonta.
O cartaz passa a ter bordas e agora ocupa a parede da entrada da minha casa,
aquela onde há um espelho que costuma guardar meus segredos.
O jornal velho?
Mesmo amassado, agora tem contornos negros.
Será presente para quem me disse ainda criança
que desuso emoldurado é arte para quem
adora brincar de esquecer,
e se esquece,
rabisca, desenha, monta, escreve, canta, filma,
até desaparecer.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Avenida aurora, n° 33

Reflexos de luzes
desenham
um encontro
em vidros de
venezianas fechadas.
O horizonte,
testemunho da palavra,
pede entrada,
mas a porta está trancada.
Vozes da rua
indagam
se no parapeito da janela
um casal se detém.
Os raios amarelados do entardecer
dizem:
"esqueçam,
hoje,
o que há aqui dentro,
ninguém vê".

sexta-feira, 3 de março de 2017

Carnaval

Suas pernas,
pedaços de tempo,
sobem em
nítido embaraço.
Seus pés,
tempo em pedaços,
dançam ao acaso.
Seus olhos,
despedaçados de tempo,
encontram
amor
num amarelo espaço.

Folhas secas

Folhas secas a farfalhar.

Penso nas distâncias
que fazem escapar os sons.
Entre tantos ditos
me imagino a correr, correr, correr
até chegar às folhas secas.
Toco-as.
Balançam.
Escuto-as.
Falam de silêncios esquecidos.
Agora,
eu

caminho.
caminho,
caminho.